Hoje, adentrados tempos do segundo trimestre do ano, caminho sob céus de Pinheiros, Vila Mariana, Higienópolis, Mairiporã, por céus que se estendem a adjacências da megalópole paulistana ao sul do país (ah, família…), e percebo que temos em nós pedaços formados por muitos dos lugares pelos quais passamos. Assim é igualmente com as palavras que passam por nós.
“A palavra nos protege”, disse Márcia Tiburi numa conversa sobre seu livro “Com os Sapatos Aniquilados, Helena Avança na Neve”.
Sim, a palavra nos protege — e nos salva. Os amigos, também. Principalmente aqueles que não nos deixam esquecer os nossos porquês. Tenho poucos amigos, os quais, ainda que com a distância e a comunicação não constante, fazem das travessões, em minha vida, razão, e não, complemento — Luciana N, Luciana P, Luciane G (“Três Marias” nos cosmos, “Três Lus” em terras firmes!); Lili de Quintana apenas minha; Kel (irmã adotada pelo coração); primota Andrezza amada; Elinho; Rafael (que ontem era, e hoje foi). E há no peito alguns mais, que chegam agora, que chegaram ontem, que vêm e ficam… e outros que partem.
Se a palavra e amigos nos protegem e salvam, a música nos alimenta, e, se a ouvirmos com os olhos da alma, ela também nos salva. Como seriamos sem o som de nossas sinfonias interiores? O que nos deixaria Beethoven se sua alma não pudesse ouvir o que se pode ver?
No percurso dos muitos anos desta vida, uma coleção de códigos postais separados por fronteiras e oceanos já demarcaram minha localização, nunca permanente — São Paulo, Curitiba, Tóquio, Melbourne, Nova York, Chicago, San Francisco, Montpellier, Heidelberg, Paris, Lisboa, Londres. Cidades-casas intermitentes que na memória refletem familiaridade.
Há, em cada uma dessas cidades, histórias que estendem-se à família; aos amigos (ímpares); aos seus residentes e arquitetura e vielas; à cultura e literatura local; aos seus livros de história; as muitas bibliotecas e livrarias — extensões das estantes de casa. Em São Paulo, porém, há algo a mais que reverbera: músicos. Todas as terras os têm, claro (!), mas a capital paulista abriga uma cultura musical única e crescente
Na última quinta-feira, fui conferir uma das programações do Theatro Municipal. Em cartaz, o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo e a pianista (que admiro, como dizem os portugueses, imenso) Karin Fernandes. Elogios desnecessários ao talento dos cinco músicos, mas, enquanto eu estava naquela que foi a sala onde Mário de Andrade iniciou o seu legado musical, vi, como num curta-metragem, todos os músicos que já pude ver tocar nos mais variados palcos do planeta. E pensei, enquanto os cinco músicos emocionavam os ouvidos atentos da platéia: “nada sai a frente dos nossos”. Pois!
Nada bate ter um músico como, por exemplo, Marcelo Jaffé, eloquentemente durante o espetáculo, dando à plateia aula magna sobre outros músicos a fazer história em épocas longínquas — e que aula (!), fomos de São Paulo a Varsóvia, e voltamos pelas cordas e teclas dos presentes no palco.
Nessa mesma noite, enquanto voltava para casa, escrevi à pessoa que gentilmente me proporcionou o espetáculo:
— “O Quarteto tem linguagem própria! Os quatro parecem até uma célula só. Admirável! Sem falar que o Marcelo Jaffé deu uma aula de história esta noite — 😍 bah! Ahhhhh, mas a Karin Fernandes foi a minha cereja do bolo! Ela é uma das melhores pianistas 🎹 que temos no país — virtuosíssima!, e sem falar que ela é uma querida, toda modesta, mesmo sabendo que é um furacão no piano. Como temos músicos excepcionais, né! Eu realmente A-M-O isso no nosso país! “
Ao observar a cidade, reflito sobre a essência do que nos faz humanos, e vejo tessituras do cotidiano, onde prédios se erguem como notas em uma pauta e os transeuntes entoam melodias mudas em seus passos — é a arte musicada e suas muitas possibilidades em nossa sinfonia da vida.
Num tempo em que o analógico avança rumo aos livros de história, sempre digo que nossa mais poderosa tecnologia são as palavras. A música, entretanto, é a mais valiosa.